O óbito dos princípios do SUS.

 Em meio a profusão de pessoas, que se acotovelavam na pequena rua 24 de Fevereiro da Av Joana Angélica, um senhor de aparentemente 60 anos, jazia estendido ao chão de cimento perto das bancas de camelô. Junto a ele um homem jovem com semblante preocupado e consternado segurava sua mão enquanto falava ao celular e respondia as perguntas que as pessoas lhe dirigiam.
- Ei moço! O que aconteceu com este senhor? - perguntei
- Aih moça! Eu vinha subindo as escadas com ele e de repente ele passou mal e caiu!- respondeu ele com sotaque pronunciado que denunciava sua origem rural.
- Como assim, caiu? Ele se queixou de alguma dor?
- Tem mais ou menos uma semana que ele fez um cateterismo e não vinha se sentindo bem, aí ontem a gente veio pra Salvador pra hoje ir pra consulta com o médico. Eu tava indo com ele agora pra lá. O médico dele fica alí na Av Sete.
 Enquanto ele respondia, eu aferia os sinais vitais do senhor, numa tentativa exasperada de encontrar alguma coisa. Mas nada! Peguei o celular no bolso e liguei para o SAMU, apesar de outras pessoas avisarem que já haviam feito isso. Não custava nada ligar de novo, de novo e de novo. Afinal o senhor estava em parada cardio respiratória e não precisa ser profissional de saúde para saber que em casos como este o tempo é preciosíssimo (com todos os superlativos que lhe são de direito)
 Passados cerca de 30min, eis qe surgiu a unidade móvel do SAMU, e em direção ao senhor vieram dois profissionais apressados com suas maletas de primeiros socorros. Massagem cardíaca de um lado, oxigenação de outro e nada do senhor reagir.
 Vamos meu tio! Vamos! Gritava eu em pensamento enquanto meus olhos iam do senhor para rapaz que o acompanhava. Ao ver que o senhor não reagia, o rapaz começou a verter as suas primeiras lágrimas imediatamente no mesmo momento em que era envolvido pelos braços de um senhora desconhecida que trajava uma camiseta de Nossa Senhora das Graças.
Ôh Deus! Ajude ele! Roguei em pensamento. Mas nada! O senhor continuava alí inerte, estendido no chão, com o aparelho de reanimação cardíaca do SAMU a apitar desesperadoramente, indicando que aquele coração continuava sem bater, a despeito de todo o esforço daqueles profissionais.
 Minutos depois um unidade avançada chegou, com um desfibrilador e dois médicos apressados. Neste momento a minha atenção já não estava mais no senhor, mas sim no rapaz que, sentando num banquinho cedido por uma camelô que agora também se desfazia em lágrimas, tinha os ombros arqueados e o olhar perdido no tempo. Não podia ficar alí parada, tinha que fazer alguma coisa, então abri caminho em meio as pessoas e fui até ele.
 Em meio a dezenas de pessoas que se dividiam entre as que estavam ali por mera curiosidade e as oportunistas (filmando com celular e afins) umas cinco ou seis estavam realmente preocupadas em ajudar como podiam, seja segurando um plástico para barrar os chuviscos que caiam sobre o corpo, seja pedindo aos outros para que se afastassem.  Mas, em volta do rapaz estava a senhora da camiseta de Nossa Sra das Graças, um rapaz de aparência pobre e marginalizada, uma mulher com cara de mal educada e eu, a esta altura segurando as lágrimas para não chorar, mas todos com algo em comum; a vontade de ajudar dando um pouco de nossa energia aquele homem visivelmente abatido. Ficamos ao lado dele por alguns minutos, até que o médico do SAMU pronunciou as palavras que não desejamos ouvir nunca:
- Este senhor foi a óbito.
  Lágrimas e desespero. Foi tudo o que pude ver nos olhos do rapaz ao olhar para aquele corpo desanimado estirado no chão. Aquele corpo que outrora foi animado por uma pessoa que veio de Xique-Xique com o seu vizinho para continuar o seu tratamento com o cardiologista, mas que infartou uma rua antes de chegar ao seu destino, por que foi obrigado a subir escadas numa cidade onde a acessibilidade não é tratada com o devido respeito pelas autoridades, por que talvez não tenha sido informado corretamente sobre a gravidade do se problema, mas principalmente por que em seu município não havia um atendimento de saúde de qualidade, que permitisse a ele ser atendido com brevidade e assim ter evitado sua morte.

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Universalidade 
"A saúde é um direito de todos e dever do Estado", como afirma a Constituição Federal.
Integralidade 
A atenção à saúde inclui tanto os meios curativos quanto os preventivos; tanto os individuais quanto os coletivos.
Eqüidade 
Todos devem ter igualdade de oportunidade em usar o sistema de saúde.
 
Para quem não conhece, estes são alguns dos princípios básicos do SUS. Resolvi colocá-los aqui apenas para tornar mais claro o motivo da minha revolta.
 Não é necessário um QI elevado para perceber que o SUS é um sistema de saúde humano que serviu e serve de modelo para muitos países desenvolvidos, mas que vem sofrendo com o descaso das autoridades políticas, principalmente no tocante a saúde dos pequenos municípios afastados da capital baiana.. A população não tem acesso a um serviço de qualidade e muitas vezes se vê obrigada a se deslocar para a capital em busca de assistência médica, enfrentando horas de viagem em ambulâncias cedidas pela prefeitura de seus respectivos municípios.
 O que está acontecendo com a saúde na Bahia? Por que as pessoas estão, cada vez mais, precisando se deslocar de seus municípios em busca de atendimento na capital? Onde estão os profissionais humanizados que estão sendo inseridos no mercado? Por que não se mobilizam para tentar reverter este quadro?
 São perguntas que faço e vou continuar fazendo. Até que eu encontre outras respostas ou não precise mais preguntar.

 Ats Jamile Leidiane.
 Futura Enfermeira!

Escritora, fotógrafa e naturalista.

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