A transformação nos faz amar o mistério- Por Paulo Coelho



A vida é feita de escolhas, e até mesmo quando protelamos em optar por alguma coisa, estamos fazendo uma escolha.
Escolher muitas vezes significa mudar, seguir um novo curso, adotar uma nova postura... E para cada uma dessas atitudes existe uma medo que nos assombra, uma quimera que insiste em se insinuar em nosso íntimo, nos amedrontando quanto ao novo que se aproxima.
Neste trecho do livro Manuscrito Encontrado em Accra de Paulo Coelho, podemos ver uma excelente síntese do quão difícil e ao mesmo tempo recompensadora é a mudança.
O Livro é baseado nos Manuscritos gnósticos de Nag Hammadi, que é composto por diversos papiros, incluindo alguns pertencentes ao Corpus Hermeticum.


Temos medo de mudar porque julgamos que, depois de muito esforço e sacrifício, conhecemos nosso mundo. E mesmo que ele não seja o melhor e mesmo que não estejamos inteiramente satisfeitos, pelo menos não teremos surpresas. Não erraremos. Quando necessário, faremos pequenas mudanças para que tudo continue igual. Vemos que as montanhas permanecem no mesmo lugar. Vemos que as árvores já crescidas, quando transplantadas, terminam morrendo. E dizemos: “Quero ser como as montanhas e as árvores. Sólidas e respeitadas.” Mesmo que, durante a noite, acordemos pensando: “Eu gostaria de ser como os pássaros, que podem visitar Damasco e Badgá e voltar sempre que desejarem.” Ou então: “Quem me dera ser como o vento, que ninguém sabe de onde vem nem para onde vai e que muda de direção sem precisar explicar isso a ninguém.” Mas no dia seguinte lembramos que os pássaros estão sempre fugindo dos caçadores e das aves mais fortes. E que o vento às vezes fica preso em um rodamoinho e tudo o que faz é destruir o que está ao seu redor. É muito bom sonhar que há sempre espaço para ir mais longe e que faremos isso algum dia. O sonho nos alegra – porque sabemos que somos mais capazes do que aquilo que fazemos. Sonhar não implica riscos. O perigoso é querer transformar os sonhos em realidade.  
Mas chega o dia em que o destino bate à nossa porta. Pode ser a batida suave do Anjo da Sorte, ou a batida inconfundível da Indesejada das Gentes. Ambos dizem: “Mude agora.” Não na próxima semana, nem no próximo mês, nem no próximo ano. Os anjos dizem: “Agora.” Sempre escutamos a Indesejada das Gentes. E mudamos tudo por causa do medo de que ela nos leve: trocamos de aldeia, de hábitos, de calçada, de comida, de comportamento. Não podemos convencer a Indesejada das Gentes a nos permitir continuar sendo como antes. Não há diálogo. Também escutamos o Anjo da Sorte, mas para esse perguntamos: “Aonde quer me levar?” “Para uma nova vida”, é a resposta. E lembramos: temos nossos problemas, mas podemos solucioná-los – mesmo que passemos cada vez mais tempo lidando com eles. Precisamos servir de exemplo aos nossos pais, aos nossos mestres, aos nossos filhos, e manter o caminho correto. Os nossos vizinhos esperam que sejamos capazes de ensinar a todos a virtude da perseverança, da luta contra as adversidades e da superação dos obstáculos. E ficamos orgulhosos com nosso comportamento. E somos elogiados porque não aceitamos mudar – mas continuar no rumo que o destino escolheu para nós. Nada mais errado. Porque o caminho correto é o caminho da natureza: em constante mutação, como as dunas do deserto. 
Estão enganados aqueles que pensam que as montanhas não mudam: elas nasceram de terremotos, são trabalhadas pelo vento e pela chuva, e a cada dia ficam diferentes – embora nossos olhos não consigam ver tudo isso. As montanhas mudam e se alegram: “Que bom que não somos as mesmas”, dizem umas às outras. Estão enganados aqueles que pensam que as árvores não mudam. Elas precisam aceitar a nudez do inverno e a vestimenta do verão. E vão além do terreno onde estão plantadas – porque os pássaros e o vento espalham suas sementes. As árvores se alegram: “Eu achava que era uma e hoje descubro que sou muitas”, dizem a seus filhos que começam a brotar ao redor. A natureza nos diz: mude. E os que não temem o Anjo da Sorte entendem que é preciso seguir adiante, apesar do medo. Apesar das dúvidas. Apesar das recriminações. Apesar das ameaças. Enfrentam-se com seus valores e preconceitos. Escutam os conselhos daqueles que os amam: “Não faça isso, você já tem tudo o que precisa: o amor de seus pais, o carinho de sua esposa e de seus filhos, o emprego que custou tanto a conseguir. Não corra o risco de ser um estrangeiro em uma terra estranha.” Mas arriscam o primeiro passo – às vezes por curiosidade, outras vezes por ambição, mas geralmente pelo desejo incontrolável de aventura. A cada curva do caminho sentem-se mais amedrontados. Entretanto, surpreendem-se com eles mesmos: estão mais fortes e mais alegres. 
Alegria. Essa é uma das principais bênçãos do Todo-Poderoso. Se estamos alegres, estamos no caminho certo. O medo se afasta aos poucos, porque não lhe foi dada a importância que desejava ter. Uma pergunta persiste nos primeiros passos do caminho: “Será que minha decisão de mudar fez com que outros sofressem por mim?” Mas quem ama quer ver o bem-amado feliz. Se em um primeiro momento temeu por ele, esse sentimento é logo substituído pelo orgulho de vê-lo fazendo o que gosta, indo aonde sonhou chegar. Mais adiante, aparece o sentimento de desamparo. Mas os viajantes encontram na estrada gente que está sentindo a mesma coisa. À medida que conversam entre si, descobrem que não estão sós: tornam-se companheiros de viagem, dividem a solução que encontraram para cada obstáculo. E todos se descobrem mais sábios e mais vivos do que imaginavam. Nos momentos em que o sofrimento ou o arrependimento se instalam em suas tendas e eles não conseguem dormir direito, dizem para si mesmos: “Amanhã, e apenas amanhã, darei mais um passo. Posso sempre voltar, porque conheço o caminho. Portanto, mais um passo não fará muita diferença.” Até que um dia, sem qualquer aviso, o caminho deixa de testar o viajante e passa a ser generoso com ele. Seu espírito, até então perturbado, alegra-se com a beleza e os desafios da nova paisagem. E cada passo, que antes era automático, passa a ser um passo consciente. 
Em vez de mostrar o conforto da segurança, ensina a alegria dos desafios. O viajante continua sua jornada. Em vez de reclamar do tédio, passa a reclamar do cansaço. Mas nesse momento para, descansa, desfruta a paisagem e segue adiante. Em vez de passar a vida inteira destruindo os caminhos que temia seguir, passa a amar aquele que está percorrendo. Mesmo que o destino final seja um mistério. Mesmo que em determinado momento tome uma decisão errada. Deus, que está vendo sua coragem, dará inspiração necessária para corrigi-la. O que ainda o perturba não são os fatos, mas o temor de não saber se comportar diante deles. Uma vez que decidiu seguir seu caminho e já não tem mais opção, descobre uma vontade está impecável, e os fatos se curvam às suas decisões. “Dificuldade” é o nome de uma antiga ferramenta, que foi criada apenas para nos ajudar a definir quem somos. As tradições religiosas ensinam a fé e a transformação como as únicas maneiras de nos aproximarmos de Deus. A fé nos mostra que em nenhum momento estamos sozinhos. A transformação nos faz amar o mistério. E quando tudo parecer escuro e quando nos sentirmos desamparados, não olharemos para trás, com o temor de ver as transformações que ocorreram em nossa alma. Olharemos adiante. Não temeremos o que acontecerá amanhã, porque ontem tivemos quem cuidasse de nós. E essa mesma Presença continuará ao nosso lado. 

 Manuscrito Encontrado em Accra de Paulo Coelho

Escritora, fotógrafa e naturalista.

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