Cabul no inverno - Literatura comentada




 
Se você é como eu e nutre um certo interesse por tudo que se relaciona ao oriente médio, deve saber o quanto os romances ambientados lá, em sua maioria, possuem um traço bastante característico que é a não obliteração da realidade, muitas vezes dramática e cruel. Ainda assim, nestes romances, essa realidade, embora dura é, algumas vezes, ligeiramente amenizada pelas belas narrativas que os tornam muito mais amenos.

  Desta forma, a primeira coisa que devo dizer é que Cabul no inverno não é um romance e portanto não tem nenhum compromisso com a suavização da realidade, pois como a própria sinopse diz, o livro é um relato de lembranças pungentes e poéticas do Afeganistão e de seu povo, que tenta encontrar a paz após décadas de guerra. E isso a autora o faz muito bem, transmite com clareza e eficiência sua experiência do tempo em que passou por lá. Apesar da sua nacionalidade, não há parcialidade em sua narrativa e em muitos trechos do livro é possível ler severas críticas a política do seu próprio país.

  Em resumo, Cabul no inverno é um livro que narra não apenas o panorama atual do Afeganistão, mas também as raízes histórias da cultura e da forma de pensamento local. É um excelente livro, principalmente por que informa e cita fontes, permitindo que o leitor possa verificar a confiabilidade do que foi escrito. Vale a pena ler.



Trecho:

No passado, praticamente a única coisa que fazia com que os pashtuns
interrompessem suas querelas incessantes era o aparecimento de um inimigo externo.
Nada inspira tanto a unidade pashtun quanto a necessidade de expulsar um invasor, e,
dada a política global dos últimos séculos, isso geralmente dizia respeito aos
britânicos. Os historiadores gostam de falar do moderno Afeganistão sob os xás
durranis como um “Estado-tampão fraco”, de pouca importância, exceto a de ser uma
terra-de-ninguém entre os principais contendores no jogo da política global — um
pouco como a carcaça mutilada do novilho que cavaleiros poderosos lutam por possuir
no esporte afegão do buzkashi. Ao norte, os czares russos cobiçavam a Ásia Central e,
para além dela, a Índia britânica. O Afeganistão estava no caminho. Os britânicos, que
haviam se estabelecido no subcontinente com a Companhia das Índias Orientais,
respondiam com uma “política de avanço” — um pouco parecido com o agressivo
“ataque preventivo” de George W. Bush — destinada a manter o Afeganistão atrelado
às decisões britânicas. Durante o século XIX, emissários, espiões, aventureiros e
soldados russos e britânicos dançaram para lá e para cá por décadas, naquilo que os
historiadores chamam de “O Grande Jogo” e foram eles, não os afegãos, que
estabeleceram as fronteiras do Afeganistão. Um emissário britânico dos primeiros
tempos observou que os afegãos nem tinham um nome para seu próprio país, mas, ao
final do século XIX, Amir Abdur Rahman começou a referir-se a ele como
“Yaghistan”, nome traduzido às vezes por “terra dos que são livres”, às vezes por terra dos rebeldes”.
De sua parte, os afegãos lutavam entre si pelo direito de suceder Ahmed Shah
Durrani, e os xás e cãs que o seguiram, cidade após cidade, neste setor, ou naquele.
Poucos foram tão eficientes quanto Zaman Shah, um dos netos de Ahmed Shah Durrani,
que conquistou o poder após a morte de seu pai em 1793, imediatamente dando ordens
de prender seus mais de 20 irmãos e de cegar o mais velho. Para a maioria dos
herdeiros potenciais, a batalha entre irmãos era mais confusa, mais sangrenta e mais
prolongada. O que os historiadores ocidentais chamam de “anarquia” prevalente no
Afeganistão; “anarquia” que algumas vezes “justificava” uma “política de avanço”,
era, sobretudo, pashtuns tribais sendo pashtuns.



Escritora, fotógrafa e naturalista.

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