Na manhã seguinte ao início dos bombardeios, desci para a rua como de costume e encontrei Sharif sentado no carro, estacionado junto ao meio-fio. Como é que eu poderia dizer "salaam aleikum"- a paz esteja com você- quando o meu país acabara de iniciar uma guerra? Em vez disso, cumprimentei: "Chittur asti?" - como vai?- e sentei no banco da frente. Ele não respondeu. Não retornou a saudação. Isso em uma língua e em um país em que saudações e rituais são uma cerimônia tão essencial à vida quanto o ar. O choque do silêncio de Sharif deixou-me sem fôlego. Ele engatou a marcha e fomos sacolejando pela rua, passando pela mesquita onde o alto-falante berrava mais uma mensagem do mulá, embora a hora da oração já tivesse terminado há muito. "Hoje é um dia diferente", pensei, embora o sol fraco inundasse o ar empoeirado da manhã, espalhando a mesma tênue luminosidade cinzenta de ontem e anteontem. [...] Durante o período do Talibã, apolícia havia prendido Sharif 15 vezes poe ele trabalhar para a americana infiel. Toda vez, ele pagava para ser solto, e a cada vez o preço subia. Ele entregou à polícia 15 mil afeganis, tudo o que possuía. Na vez seguinte, Caroline pagou dois mil dólares para o soltarem. Mas eles o prenderam de novo e o mantiveram encarcerado por vinte dias. Acusaram-no de ser cristão. para fazê-lo confessar, haviam golpeado seus pés com cabos de aço e quebrado seus ossos. Seus pés ainda doíam, dizia. Usava sapatos grandes e largos. Mas durante esse tempo ele tomara conta de seu irmão mais novo, Kabir, ajudando-o na escola, levando-o às aulas de inglês, vigiando-o de perto e incitando-o a fazer as coisas que o próprio Sharif talvez tivesse feito se as coisas tivessem sido diferentes,
Inclinei-me e abaixei o volume do rádio:
- Você está muito zangado está manhã, Sharif - disse- É por causa dos bombardeios, não é?
Ele ficou quieto por um longo tempo, mordiscando a ponta dos bigodes.
-Vocês bombardeiam Afeganistão. Muitas pessoas mortas. Mas nós também felizes que o Talibã vai embora, Vocês dizem que nos ajudam. Agora vocês bombardeiam o Iraque. Vão pegar o petróleo. O próximo talvez Irã? Síria? Vocês bombardeiam nossos irmãos em toda parte?
-Eu não sei- respondi.
-Vocês já esquecem o Afeganistão- disse- Como antes. Os russos vão embora. Os americanos vão embora. O que é que vocês se importam com o Afeganistão? Nada. Deixa eles lutarem. Deixa eles se matarem. Vocês podem assistir. Que nem luta de galo no Babur's Garden.
[...]
-Vocês americanos são como crianças. Vocês pensam só no hoje. E os próximos anos? E as promessas que vocês fizeram no ano passado?
Então era isso. Ele acreditara na promessa americana, que dessa vez não abandonaríamos seu país, e nós o havíamos traído. Prometêramos uma ajuda que a maioria não conseguia ver. Prometêramos uma reconstrução que não aconteceu. Prometêramos uma paz que nunca veio.
-Eu sinto muito, Sharif-disse- Eu também estou zangada. A música subia a nossa volta, trazendo-me lágrimas aos olhos- Por favor, não fique zangado comigo, Sharif. Esse homem, o Bush, que faz essas coisas, ele não é meu presidente.
Cabul no inverno- Página 127 a 129
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